miércoles, 18 de noviembre de 2020

Da janela da Casa Amarela

Na minha juventude, quando tudo acontecia na minha cabeça e bem antes de acontecer tudo na minha vida, vivi em Pelotas, Rio Grande do Sul, e trabalhei como atendente em um armarinho.

Gostava muito do que fazia, mas sempre preferi atender às pessoas que quisessem pôr ou trocar botões de pressão, ilhoses, fivelas, apliques metálicos... essas coisas. É que a máquina das pressões ficava em frente à janela que dava para o calçadão da cidade. Não é preciso explicar; por aí passava de tudo.

Minha mão trabalhava quase que com a mesma velocidade dos olhos: uma puxada na alavanca e uma olhada de rabo de olho na rua; uma furada no tecido e já tinha percorrido tudo de esquina a esquina várias vezes.

Vi gente indo e vindo do trabalho, de casa, da praça...

Vi a menina linda, caminhando rápido olhando apenas o chão a sua frente, não permitindo que nada ao seu redor interferisse em sua marcha.

Vi ciganas cercando as pessoas que, de várias formas, escapavam de suas leituras de não: ora um olhar agressivo, ora um quase imperceptível balançar de cabeça, ora um o gesto único e seco da mão direita abanando, ora tudo em sequência.

Vi polícia atrás de pivetes, pivetes tocaiando possíveis vítimas, o mendigo louco que falava sozinho, a prenda e o gaúcho pilchados a caminho do CTG, o cachorro magro, a velha do cabelo lilás, bêbados, freiras, ambulantes...

Todos os dias, tudo e todos de todo o lugar desfilavam para mim.

Às vezes percebia meus desejos dobrando a esquina, umas vezes vindo, outras vezes indo...

Dentre todas as percepções que tive, uma mulher. Uns quarenta anos (não duvido fossem vinte). Vestia roupas poucas, cumpridas e largas que me pareceram ser de flanela, assim como o lenço que lhe cobria a cabeça e as cores da idade. No braço esquerdo, aconchegado próximo ao seio, cuidava com muito zelo de um embrulho pequenino feito em manta de lã grossa azul clarinho. Caminhava em círculos e de um lado ao outro sob o sol frio do inverno gaúcho, a mercê da aproximação das pessoas; ia ao encontro delas.

De repente, se virou e veio em direção a minha janela olhando fixo para alguém que vinha a minha direta; havia avistado um senhorzinho que lhe pareceu bondoso e, então, eu a vi. Vi nos seus olhos uma luz que brilhava e no rosto, alguma coisa forte, meio sorriso, meio esperança, meio oração, que sustentou sua mão direita lançada adiante em gesto de petição. E ela ao encontro dele e ele em direção a ela.

De repente de novo, ficou estancada; apenas a cabeça se movia seguindo o passar daquele. E a cada passo que ele dava uma luz se opacava em seus olhos, um sorriso se apagava, uma esperança escapava, uma oração se calava.

Rendida, deixou que o braço lentamente descansasse rente ao corpo, cabisbaixa.

Voltou a levantar o olhar após um profundo suspiro e o pôs em busca; baixei o meu antes que eles se encontrassem e segui na máquina das pressões.
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(ilustrado por VÍCTOR RIGAZZI)

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